A tragédia ambiental no Rio Grande do Sul tem colocado em cheque o negacionismo climático, que há anos influencia as políticas públicas de todo o país. A grande questão é que, após anos de ataques ao meio ambiente por parte do Congresso Nacional e dos governos, com o objetivo de favorecer o agronegócio e a indústria no curto prazo, fica cada vez mais claro que não dá mais para evitar eventos extremos como o que acontece no Rio Grande do Sul hoje.
A crise climática já não é mais uma realidade para o futuro, mas parte do presente. Por isso, uma política que se restrinja apenas a mitigação de danos já não é mais suficiente; é preciso pensar em políticas de restauração ambiental para o longo prazo, além de medidas emergenciais de adaptação climática, com remodelamento do planejamento urbano para que as cidades sobrevivam aos eventos extremos que já estão acontecendo. Porém, os governantes e congressistas ainda estão pensando políticas públicas como se nenhuma dessas tragédias estivesse acontecendo.
No próprio Rio Grande do Sul, o desastre, que segundo a Defesa Civil gaúcha, atingiu 447 dos 497 municípios do estado, atingindo mais de 2,1 milhões de pessoas, poderia ter sido muito menor se medidas fossem tomadas de acordo com as orientações dos especialistas.
Mas além do investimento insuficiente em políticas de mitigação e a ausência de políticas de reparação, o estado ainda aprofundou a destruição ambiental. Menos de um mês atrás, o governador Eduardo Leite (PSDB) sancionou uma lei que flexibiliza regras ambientais para a construção de barragens em áreas de preservação permanente, as chamadas APPs. A vegetação dessas áreas compõem os “cinturões verdes”, importantes porque podem ajudar a conter maiores volumes de chuva. Além disso, o estado ignorou o plano de prevenção de 2017, que não saiu do papel e o código florestal do estado foi alterado. A consequência de tamanha flexibilização da legislação ambiental é um dano muito maior em casos de eventos extremos, como o que acabou de acontecer. O atual desastre já é a maior cheia da história do estado, superando a cheia de 1941, que foi um evento isolado. Com a mudança climática, a tendência é que o volume alto de chuvas se tornem cada vez mais frequente.
Destruição a nível nacional
No Congresso mais ineficiente da história, há mais de 20 projetos que ameaçam direitos socioambientais. Querem desmantelar o Código Florestal, acabar com o licenciamento, liberar mineração, reduzir os espaços para reservas indígenas, aumentar o número de agrotóxicos, flexibilizar a legislação para os transgênicos e um longo etc.
Além disso, um forte lobby no Congresso Nacional tem freado o avanço da implementação de novas fontes de energia renovável no país. Como as hidrelétricas têm tido sua produção energética fortemente impactada pelas mudanças climáticas, pois são dependentes do ciclo das chuvas, a utilização de usinas termelétricas a partir da queima de carvão aumentou nos últimos anos. Por serem menos eficientes, mais caras e muito mais poluentes, os donos dessas termelétricas se sentem ameaçados pela implementação de usinas eólicas offshores e tem buscado representantes no Senado para proteger o setor, através de Projetos de Lei e emendas parlamentares que gerem incentivos fiscais e permitam que essas usinas permaneçam em atividade até 2050.
Dentro do próprio governo Lula (PT), o setor ambientalista tem perdido a disputa com setores ligados ao agronegócio e ao desenvolvimentismo. Se, por um lado, o ministério do meio ambiente e dos povos indígenas utilizam estudos científicos para apontar que não há outro caminho para a humanidade sem a redução das emissões de gases do efeito estufa, provocados principalmente pela exploração de combustíveis fósseis, por outro, o ministro de Minas e Energia, Alexandre Silveira, afirmou que o Brasil deve continuar explorando petróleo e gás até atingir o IDH (Índice de Desenvolvimento Humano) dos países industrializados.
Essa dicotomia leva o país a não ter um plano claro de transição energética. Pois, enquanto fala de descarbonização da economia, também planeja a ampliação da exploração de novas camadas do pré-sal em meio ao território amazônico.
Belo Horizonte está entre as capitais em risco
As mudanças climáticas afetam todo o mundo. Por isso, as medidas preventivas de mitigação e reparação têm que se tornar prioridade em todas as esferas de governo. Como os eventos extremos têm se tornado cada vez mais comuns, é preciso agir tendo em vista as previsões mais pessimistas.
Segundo relatório da ONU, Porto Alegre não era nem a capital brasileira mais ameaçada pelas mudanças climáticas. De acordo com o Painel Intergovernamental das Mudanças Climáticas, esse posto é ocupado por Recife, que sofre o risco de ser engolida pelo mar. O alerta também se estende para o Rio de Janeiro e Santos, no litoral de São Paulo.
Belo Horizonte também é uma cidade em risco. A capital mineira bateu recordes no aumento da temperatura, sendo a capital que mais esquentou no país, com registros de 4,2ºC acima da média nacional. Parte da responsabilidade está na completa ausência de políticas de preservação e restauração ambiental do governo de Fuad Noman (PSD). Considerando apenas os últimos 12 meses, 7.326 árvores foram derrubadas pelo poder público na cidade, em ações que vão desde a realização de uma edição do Stock Car, prevista para agosto deste ano, que exigiu a remoção de 63 árvores, até ações preventivas de supressão e poda para evitar danos e desastres em períodos chuvosos.
Porém, ambientalistas têm denunciado que muitos cortes foram feitos de forma ilegal e injustificada. Como o corte de um Oiti na Av. Abrahão Caram, cujo corte é proibido pela legislação ambiental. Além disso, foram suprimidas duas árvores, da espécie Flamboyant, do século XIV, na Praça Raul Soares. Novas árvores foram plantadas, mas elas levarão em média 10 a 15 anos para atingir a fase adulta.
Mesmo quando a Prefeitura propõe projetos positivos, como foi o PL 270/22 que “Institui a Política Municipal de Enfrentamento das Mudanças Climáticas e de Melhoria da Qualidade do Ar”, que visava a redução de 20% de gases de efeito estufa na cidade até 2030, 40% em 2040 e chegaria a 100% em 2050, a iniciativa não é implementada. O projeto sofreu forte resistência da Câmara de Vereadores, que segurou a tramitação por quase 2 anos, até sua a rejeição completa e arquivamento em novembro de 2023.
Além da arborização, outro fator que afeta diretamente a temperatura da cidade é a questão do transporte e mobilidade urbana. Dar ênfase na implementação de infraestrutura cicloviária e de circulação de pedestres deveria ser uma prioridade para a cidade. O Plano Diretor de Mobilidade Urbana de Belo Horizonte (PlanMob-BH), previa a expansão das ciclovias, atingindo 411 km até 2020. Porém, menos de 20% desse plano foi posto em prática. Belo Horizonte é uma das capitais com menos quilômetros de ciclovia por habitante e uma das que mais tem congestionamentos. A expansão dessas ciclovias para cumprimento do plano diretor ainda é alvo de disputas políticas e judiciais, por quem acha que a mobilidade urbana será resolvida com alargamento de vias para os carros.
Além dos benefícios para o trânsito e redução da emissão de gases do efeito estufa, as ciclovias também representam mais segurança para os ciclistas, que são diariamente vítimas de acidentes de trânsito na cidade. Segundo dados do Hospital João XXIII, só no ano passado, foram 358 registros de internações de ciclistas devido a acidentes de trânsito.
Outra política deveria ser o incentivo ao uso do transporte coletivo, por meio de promoção, publicidade, variabilidade de modais, melhoria da qualidade e valorização da integração de modos de transporte. Contudo, a cidade se mantém refém de um sistema de transporte público quase exclusivamente rodoviário, caro, superlotado, mal conservado e ineficiente quanto à sua pontualidade.
Se no século passado Belo Horizonte foi pioneira no transporte sobre trilhos, com o bonde como o principal meio de transporte, hoje praticamente não há qualquer alternativa ao ônibus. Falta um planejamento urbano que conte com alternativas como Veículo Leve sobre Trilhos (VLT) e trens urbanos. Além disso, o contrato firmado entre as empresas e o poder público prevê a remuneração das empresas por número de passageiros e não por número de viagens, o que incentiva o sucateamento do transporte, com menos viagens disponíveis e ônibus cada vez mais lotados.
A privatização e aumento da tarifa do metrô, sem qualquer plano de expansão e melhoria da linha em curto prazo, fez com que o número de passageiros deste modal caísse 72% – de 64,9 milhões para 18,1 milhões, na última década, conforme relatórios públicos de gestão da Companhia Brasileira de Trens Urbanos (CBTU).
Outro ponto de atenção, que também dialoga com o transporte e mobilidade, tem a ver com sua impermeabilidade. Há anos, Belo Horizonte tem adotado a canalização completa de rios para expansão da malha rodoviária na cidade. A mais importante delas é o Boulevard Arrudas, que canalizou cerca de 7 km do Rio Arrudas. Em 2020, com o grande volume de chuvas da cidade, parte da estrutura de canalização se rompeu, gerando explosões de jatos d’água que alcançaram 5 metros de altura, no canteiro central da Avenida Andradas. O fenômeno se somou às inúmeras inundações da cidade, demonstrando mais uma vez que a canalização de rios passou a ser uma medida antiquada na engenharia moderna e que é necessário repensar esse modelo, para evitar desastres ainda maiores no futuro. Em várias partes do mundo, o que tem se adotado é uma política oposta a essa, que deixa os rios livres e cria mais pontos de permeabilização em suas margens, para um escoamento mais rápido e natural da água.
Está cada vez mais claro que a política ambiental tem que se tornar prioridade em todas as esferas de governo, a começar pelo município, mas também com ações que se somem e se sincronizem com o estado e o país. Junto a isso, é preciso que os movimentos sociais pressionem o poder legislativo para que se aprovem políticas ambientais que estejam à altura da crise climática, não apenas com ações emergenciais que visem reduzir os danos que virão, mas que busquem também ações de médio prazo de adaptação aos eventos extremos e de longo prazo com a reparação dos danos ambientais. Sem elas, eventos como os que hoje acontecem no Rio Grande do Sul se espalharão por todo o Brasil (e todo o mundo) de forma tão rápida e avassaladora, que criarão uma legião de refugiados climáticos.