Na noite de ontem (06/04) a Câmara dos deputados aprovou por 317 votos a 120 o texto base de uma lei que flexibiliza regras para que empresas comprem vacinas contra a Covid-19.
Desde o mês passado, a compra de imunizantes pela iniciativa privada já é permitida, mas as empresas eram obrigadas a doar a totalidade dos insumos comprados até que todo o grupo de risco fosse vacinado. A medida visava evitar o “fura-fila institucionalizado”, mantendo a base do Plano Nacional (PNI) de Imunização.
O PNI prioriza a administração de doses em pessoas que, caso contraiam a doença, sofrem mais riscos de hospitalização e morte, como profissionais de saúde, idosos e portadores de comorbidades. Além da questão humana, a proteção dos mais vulneráveis visa evitar (ou ao menos amenizar) os colapsos dos sistemas de saúde e funerários, que já estão estrangulados. A previsão do Ministério da Saúde é que a vacinação dos prioritários só termine em setembro.
Com a mudança de regras, empresas podem comprar, distribuir e aplicar as doses de vacina, doando apenas metade dos imunizantes para o SUS, independente da fase do PNI. A outra metade deve ser aplicada de forma gratuita nos funcionários da empresa.
O projeto ainda permite que as empresas comprem e distribuam vacinas não autorizadas pela Anvisa, desde que tenham o aval de agencias internacionais reguladoras de saúde reconhecidas pela OMS. Essa flexibilização não vale para as doses adquiridas pelo poder público.
A votação na Câmara ainda não está concluída, pois ainda há destaques a serem apreciados. Após a votação de todos os destaques, o projeto segue para o Senado.
Sabotagem do PNI
O presidente da Câmara dos deputados Artur Lira (PP/AL) já vinha defendendo essa flexibilização publicamente há algum tempo, o argumento do deputado é que a doação de 100% das doses não era atrativa pra iniciativa privada, e que sua colaboração poderia acelerar a vacinação, contribuindo com o PNI. Mas, por traz da aparente boa intenção do discurso, percebe-se mais uma vez a ideologia histórica do “lucro acima da vida”, praticada pelo governo Bolsonaro e sua base aliada desde o início da pandemia.
É sabido que devido a escassez de vacina no mundo, o alto custo para a aquisição e a complexa logística de transporte e armazenagem de insumos não vai permitir que qualquer empresa faça aquisição de imunizantes. Assim, apenas grandes empresas e multinacionais serão capazes de vacinar seus funcionários e isso pode gerar grandes distorções no PNI, como as que listamos abaixo:
Compra privada reforça a ideologia de que a vacina é uma proteção individual e não uma ação coletiva. Incentivar essa perspectiva de que “se a farinha é pouca, o meu pirão vem primeiro” é contraproducente, porque a eliminação do vírus só vai acontecer a partir da cobertura de mais de 70% da população. Se a imunidade de rebanho não é atingida, o vírus não para de circular, o que o torna mais forte, mais resistente e mais contagioso.
A vacinação privada aumentará vertiginosamente a circulação de pessoas do mesmo setor. O objetivo dos empresários ao vacinar seus funcionários é justamente aumentar a pressão para a retomada das atividades presenciais e abandono do distanciamento e demais medidas de segurança (que custam alto para a empresa). Isso aumentará a contaminação e a chance do surgimento de novas variantes resistentes a vacina. Junto a isso, essa pressão será grande mesmo nas empresas concorrentes que não tem condições de comprar imunizantes, colocando também mais pessoas não imunizadas em circulação.
A negociação a partir da iniciativa privadas pode gerar uma elevação de preços e dificuldades adicionais para a aquisição dos imunizantes pelos entes federativos. Embora haja uma emenda que proíbe as industrias farmacêuticas de vender doses para empresas antes do cumprimento de todos os acordos vigentes com o governo federal, ainda não há doses firmadas suficientes para imunizar toda a população, o que pode gerar uma maior alta do preço quando novos atores passarem a disputar essas doses. É preciso salientar que se uma empresa tem condições de comprar imunizantes, o Estado brasileiro tem ainda mais condições para negociar em grande escala, portanto a concorrência não apresenta qualquer benefício para a ampliação da vacinação brasileira.
Venda ilegal de vacinas pode crescer. Já temos visto uma grande quantidade de vendas de imunizantes falsos e “camarotes da vacina” investigados pela Polícia Federal. Com menos possibilidade de controle social e importação pela iniciativa privada, o número de doses desviadas para venda ilegal tende a crescer ainda mais.